Edu: Em sua coluna de domingo no ‘El Pais’, o
britânico-catalão John Carlin pegou o episódio envolvendo Oscar Pistorius para
construir uma pequena tese sobre as maldades que o esporte é capaz de fazer,
sob o título 'La
Fábrica de Mitos'. Lembrou de outras farsas como a de Lance Armstrong e o
caso Tiger Woods, mas o núcleo do artigo ressalta os danos que o ‘complexo
desportivo-industrial’, expressão utilizada pelo ‘Financial Times’, pode causar
com um atleta. Será que o futebol, que por estar sempre superexposto, tem proporcionalmente
tantos casos assim de vítimas célebres do sistema? Ele mesmo só lembrou do
ex-goleiro do Barça, o alemão Robert Enke, que se suicidou numa crise de
depressão, se bem que Enke não chegou a ser um mito.
Carles: Tem outro caso extremo, no futebol argentino,
Mirko Saric, um garoto que em 40 jogos pelo time do San Lorenzo e com 20 anos
de idade viveu todos os ciclos possíveis dentro da vida profissional e pessoal,
alcançando o estrelato, a decadência, sofreu uma contusão séria e uma profunda
depressão, o que o levou a acabar com a própria vida. Existe uma necessidade da
indústria cultural de construir mitos ao menor aceno de genialidade, justamente
porque conhece a fragilidade desses mitos fabricados e a necessidade de
substituição imediata das eventuais baixas nas manchetes. Pistorius, como O. J.
Simpson, passou de mito esportivo, de super-homem, a alimentar essas manchetes
como caso policial e daí provavelmente ao ostracismo. Rei morto, rei posto.
Edu: O que quero dizer é que, no futebol, mais do
que em outros esportes, a proporção de danos causados pelo tal 'complexo
desportivo-industrial' é bem menor, na medida em que a superexposição cria um
paradoxo: as coisas ficam obrigatoriamente mais transparentes. Há mais
mecanismos de controle. Vamos aos casos extremos de celebridades. Nem Messi,
nem Cristiano, como por aqui o Neymar, tiveram um berço de ouro, uma educação
exemplar. Saltaram ainda jovens para um mundo muito especial, em que os sonhos
de popstar se cumprem com o trabalho que eles fazem com gosto em campo. Em
troca, eles são obrigados a abrir mais suas vidas. Eles são exemplos para os
surgem agora? Claro que são. Quem não quer ser um Messi no mundo futebol? Ou
seja, o 'complexo desportivo-industrial' pode muito bem ser uma escolha de vida
e o sujeito não entra nesse mundo achando que será uma travessia suave. Uns
aguentam, outros não. Claro que há fatalidades, mas como em qualquer atividade
humana.
Carles: E não entrar nele, nesse 'complexo
desportivo-industrial', pode ser uma escolha também, mesmo que isso suponha ser
preterido ao ‘Balón de Oro’ ou renovar por menos milhões, mas em compensação
poder tornar o sujeito um pouco mais dono do próprio nariz. O exemplo é claro,
nosso personagem de ontem, Iniesta. Nem acho que as vidas do Messi ou do
Crsitiano sejam tão transparentes. À parte da genialidade, que não é pouca coisa,
eu diria que suas vidas relativamente planas facilitam a sua escolha para o Olimpo.
Ou talvez seja justamente o contrário. Resumindo, não acredito que o futebol
esteja isento nem menos ameaçado pela sombra desse complexo, mas sim acredito
que em um esporte tão popular as máquinas que fabricam os mitos sejam muito
mais competentes.
Edu: Não está isento, muito ao contrário. Insisto em
que o futebol é só uma extensão da vida. Enke se matou porque era depressivo.
Armstrong se dopou porque queria ganhar tudo - e dinheiro principalmente. Um
não suportou conviver com suas angústias. O outro deu sucessivos golpes para se
manter no topo. Eles são vítimas do 'complexo desportivo-industrial'?
Carles: Sim, tudo o que acontece no futebol acontece na
vida, mas o meu vizinho pode ser depressivo e eu nem sei. Ele não está nas
manchetes que expõem e magnificam. Outra faceta do futebol é a sua capacidade
de construir e derrubar mitos a cada 3 ou 4 dias, ou seja, a cada rodada.
Descaradamente os clubes e os craques "entram e saem das crises" ao
bel prazer das manchetes. Estas precisam de alternâncias para combater uma
eventual monotonia. Outros esportes estão sujeitos à análise do desempenho a
longo e médio prazos e, por isso, seus ídolos podem demorar muito mais para
receber a sua dose de antídoto, não acha?
Edu: Há muita gente depressiva no mundo, nem tanto
quanto golpistas e fraudadores como o Lance. Acontece que isso nada tem a ver
minimamente com o futebol, nem com o esporte. O futebol é até puro na essência.
Tem muito menos aberrações do que poderia. E quem cria e derruba mitos
evidentemente não é futebol em si.
Carles: Imagino que mais do que diferenciar o futebol
dos outros esportes quanto à construção de mitos, você busca mostrar que no
caso Armstrong existe uma premeditação do próprio. No caso de moços como Messi
e Cristiano, cujo grande desejo é alcançar o ponto máximo na sua profissão, o
que prevalece é uma manipulação externa. É isso? É essa talvez a grande
diferença entre esses meninos de 14 anos aos que se acena com a grande oportunidade
da vida deles e o oportunista, não?
Edu: Quero dizer é que o futebol, por alguns
motivos, e um deles é a superexposição, tornou-se menos vulnerável a essas
aberrações. E quero dizer principalmente que tudo é uma questão de formação
humana, estrutura pessoal, como em qualquer sistema de convivência e em
qualquer profissão ou circunstância social. Ha golpistas e vítimas em todo
canto, mesmo onde não há nenhum 'complexo industrial' envolvido na história. Se
o cara é estruturado e capaz de suportar um revés - como, por exemplo, Messi
parece ser - ele segue adiante. Do contrário, surgem os Lances e Pistorius.
Não, o futebol como sistema não é de jeito nenhum um paraíso imune a golpistas.
Longe disso. Só estou falando de aberrações pessoais, de seres humanos.
Carles: É possível, mas todos, sem exceção, são ídolos
de barro, e estão arriscados a quebrarem ao menor esbarrão.
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