Carles: Historicamente
e principalmente nas últimas décadas, a África ameaçou por algumas vezes
transformar-se na terceira força continental do planeta futebol. Será que os
problemas são os que todos desconfiamos ou é só uma questão esportiva?
Edu:
Não mesmo, definitivamente. Se contarmos a quantidade de grandes seleções e
grandes jogadores formados ali nas últimas duas décadas e meia - desde que Camarões deu uma canseira na
Inglaterra nas quartas de final da Copa de 90 - , ficaria difícil explicar como
o continente ainda não se tornou uma potência do futebol.
Carles:
Continua sendo um celeiro de craques e, recentemente, de jogadores também de
equipe, dezenas de jogadores de meio de campo, do tipo carregadores de piano.
Em alguns momentos, seleções como o próprio Camarões, Nigéria, Senegal, Costa
de Marfim chegaram a parecer suficientemente competitivas como para postular
posições de pódio. No entanto, parece que vão perdendo suas chances e etnias
aparentemente com menos vocação natural como a Ásia , à base de insistência e
investimento, tomam à frente por se opor à hegemonia da Europa e da América do
Sul.
Edu:
Se pensarmos só em material humano e ignorarmos os investimentos asiáticos, teremos
um dado impressionante: dos dez jogadores mais bem pagos do futebol, três são
africanos, Eto'o, Yaya Touré e Drogba. E, hoje, Eto'o ganha mais que Messi e
Cristiano, é o jogador mais bem pago do planeta. Isso significa que a África
Negra já está entre os melhores do mundo. Mas...
Carles:
A célebre frase do Eto'o quando chegou ao Barça talvez seja definitiva:
"Vengo a correr como un negro para poder vivir como un blanco".
Edu:
Quem se destaca sai, ao menor sinal, à mínima possibilidade que surja. As
cisões internas, crônicas, em muitos países somam-se à penúria social que
impede qualquer projeto de organização que segure os talentos por lá.
Poderíamos enumerar aqui uma dúzia de motivos para os caras subirem para a
Europa.
Carles:
Nem acho que o problema seja a emigração dos talentos. Não deixa de ser um
estágio de aprendizagem e aperfeiçoamento, mas sim as carências que se deixam
para trás. A contínua dependência das pobres infraestruturas da benevolência de
quem se destaca e vai jogar no planeta branco. Exemplos como as fundações do
próprio Eto'o ou de Kanouté parecem paliativos insuficientes. Importantes, mas
insuficientes.
Edu:
De outra parte, não há nenhum mecanismo nos órgãos oficiais do futebol que
assegure projetos sustentados na África. Geralmente, o que é feito tem caráter
assistencialista e beneficia regiões politicamente 'adaptáveis', para usar um
termo leve. A Fifa faz uma coisinha aqui e outra ali para limpar a consciência,
mas é dolorosamente demagógico.
Carles:
Exato. Assistencialismo, benevolência… Iniciativas individuais.
Edu:
O pior é que muitas áreas dependem justamente dessa ajuda individual. Drogba
também comanda ações humanitárias em muitas regiões paupérrimas da Costa do
Marfim. Todo jogador da África Negra que atinge um certo status tem lá seu
projetinho, sua forma de ajudar. Mas a verdade é que são atividades que jamais
vão mexer na estrutura, embora sejam bem-vindas.
Carles:
Verdade. Um passo importante é a consciência desses craques, o reconhecimento
das raízes e a manutenção do vínculo. Mais importante talvez que as ajudas em
si. É uma luta pelo crescimento sem perder a identidade. Não creio que uma
tentativa de imitação do modelo europeu pura e simples seja a solução
definitiva, sob o risco de não ser duradoura e de o futebol africano perder um
traço importante, a essência do futebol negro que chegou através de outras
latitudes, mas cuja verdadeira identidade está na África.
Edu:
A encruzilhada do futebol africano é exatamente essa. Os países onde surgem
supercraques e alguns mitos mesmo, como Roger Milla, têm como privilegiar a
formação esportiva se outros segmentos da sociedade carecem de condições
mínimas para seguir adiante? Como compatibilizar uma atividade com tal nível de
congraçamento coletivo como o futebol com as dificuldades básicas de
sobrevivência cotidiana? Eu diria até que em muitas regiões do Brasil já
tenhamos vivido algo parecido em tempos passados e politicamente mais bicudos.
Se imaginarmos que certas regiões africanas ainda são palco permanente de
guerras civis dilacerantes, tanto pior...
Carles:
As dificuldades políticas na África têm outras matizes, mas nem por isso menos
complicadas. O colonialismo é evidente. Isso é cruel, mas mais fácil de
reconhecer. O primeiro passo foi que esses craques que citamos poderiam ter
escolhido defender outras seleções mais poderosas e acabaram preferindo os seus
países de origem, alguns inclusive circunstancialmente não nascido nos seus
territórios. Mas a identidade vigora. Já houve diversos casos de jogadores que
atuam nas ligas europeias que voltaram de temporadas com as suas seleções na
África com malária. E há o recente caso do atentado à seleção de Togo em
Angola. É um risco assumido frente à tentação de tentar esquecer e deixar para
trás uma realidade pouco animadora.
Edu:
Até acredito que as estrelas e alguns jogadores de nível médio tenham essa
consciência de identidade, Carlão. Mas há uma imensidão de anônimos que abrem
mão de suas origens para tentar fazer carreira nos lugares mais improváveis, a
Ucrânia, o futebol polonês, os nórdicos, a Islândia. E jogam por qualquer
tostão, em equipes que disputam terceira e quarta divisões. Jogam por sobrevivência.
Esses não voltam mais, na maioria das vezes por falta de condições. Acho que
ninguém faz ideia do número de africanos anônimos que correm pelos campos do
mundo.
Carles:
Sem querer entrar em estereótipos, acredito que se existe uma região onde se
preserva de alguma forma a essência da transmissão do conhecimento e das
técnicas é dentro das culturas africanas. O escritor e etnologista malinês
Ahmadou Hampaté dizia que na África, quando morre um ancião, uma biblioteca se
queima, sem a necessidade de se incendiar nada. Acho que essa é a chave. Essa
responsabilidade ou compromisso que não vejo nos nórdicos ou países europeus do
leste. Mas claro que o oportunismo existe em qualquer lugar.
Edu:
Não estou dizendo que o sujeito que queira uma vida melhor na Europa tenha que
renegar suas raízes. Mas se para ter uma comidinha básica na mesa ele tiver que
jogar sobre neve o resto da vida, vai morrer fazendo isso. Mesmo que suas
convicções culturais sigam imaculadas. E lamento: não será a nossa geração,
quem sabe nem a dos nossos filhos, que verá um africano ser campeão mundial.
Carles:
Uma pena.
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