Edu:
Uma figura em extinção por estes lados ainda é bastante cultuada nos times daí,
na Espanha até mais que em outros lugares. É o que vocês chamam de
jogador-bandeira, aquele símbolo do clube, formado na 'cantera', que incorpora
todos os valores de identificação que a torcida tanto gosta. Alguns times, como
o Barça, têm até mais de um, como Xavi e Puyol. Talvez só a Inglaterra ainda
tenha tantos jogadores-bandeira como a Espanha - Terry no Chelsea, Gerard no
Liverpool e Giggs no United.
Carles:
Imagino que isso esteja associado à superlativa vinculação com as raízes. Nas
férias, a maioria dos espanhóis mantêm o hábito de voltar aos “pueblos” de
origem deles mesmos ou os pais, onde conservam a casa da família com as
características das construções originais. Mas nada que possa resistir muito
tempo ao vil metal. O Brasil perdeu faz tempo essa batalha. Eu diria que até os
sotaques regionais a Globo estigmatizou, que dirá de outros vínculos afetivos,
mais frágeis ainda.
Edu:
Não resiste mesmo. Na Itália, que sempre teve essas presenças locais muito
pulsantes, a história dos símbolos já naufragou faz tempo. E mesmo aí perto, em
Madrid, o “Special One” se encarregou de enterrar o último jogador-bandeira dos
‘blancos’, Iker Casillas. A rigor, acho que é um símbolo com os dias contados
em qualquer canto do mundo do futebol. Aqui, os últimos foram dois goleiros, um
que já parou, Marcos, e outro que já devia ter parado, Rogério Ceni.
Carles:
O grande obstáculo na carreira de Casillas neste momento é justamente superar
esse forte vínculo, o fato de ser o "buque insígnia" do madridismo.
Marginalizado pelo zangado, não tem outra alternativa que sair do território
espanhol, caso o treinador siga no clube.
Edu:
Nem sei se o torcedor, hoje em dia, tem esses laços tão fortes com o capitão ou
com o jogador que de alguma forma simboliza a história do time. Certamente isso
começou a ser desmontado quando da Sentença Bosman, em meados da década de
1990, a lei que permitiu a livre circulação de todos os jogadores europeus dos
países da zona do euro, como qualquer trabalhador. E o retrato mais fiel dessa
transformação foi o time da Inter de Milão, várias vezes campeã da Itália a
partir de 2005 e que quando conquistou a Champions não tinha um único italiano
entre os titulares. Por coincidência o técnico era Mou.
Carles: Feito
que ele esteve a ponto de repetir no Madrid faz uns dias, no jogo de volta
contra o Galatassaray em Istambul, escalando um time com um único espanhol.
Repito o que já disse algumas vezes, os jogadores de futebol são profissionais
e nenhum torcedor tem direito a vetar a saída de um ídolo. Mas é de se
agradecer que um polpudo cheque não seja capaz de acabar com tamanho idílio. Em
Valencia tivemos um caso desse tipo, Albelda, jogador que se despede no final
desta temporada e que, pese ter iniciado a carreira em primeira cedido ao
Villarreal, é o jogador-bandeira do clube ‘che’. Outro dia reivindicou não só
mais jogadores espanhóis no seu time, mas que os valencianos fossem em maior
número. Isso não o impediu de entrar com um processo trabalhista contra o clube
em 2008. Prova de que a sua lealdade não é cega.
Edu:
Lealdade tem limites, ainda mais nestes tempos e nesse ambiente. Raulzito que o
diga. Ao deixar Madrid - coisa que a torcida nunca imaginou que poderia acontecer
-, poderia ter falado poucas e boas depois de ser relegado pelos galácticos.
Mas a sua resposta foi simplesmente sair, quietinho.
Carles:
Madridista porém correto. É um cara educado e deu provas do seu carinho pelo
clube. O próprio Del Bosque e também Camacho, madridistas exemplares,
comprovaram que a lealdade que eles dedicaram ao clube não foi recíproca. Coisa
de grande capital. O apego muito mais visível em outras regiões do território
espanhol, inclusive na segunda maior cidade, Barcelona, não é moeda corrente
nos times da capital. Torres foi embora sem quase trauma para o Atlético de
Madrid, clube que até a chegada de Simeone nunca hesitou em desfazer o plantel
a cada fim de temporada.
Edu:
Acho que esse é o caminho irreversível dos novos tempos mesmo. Pouco apego,
poucos vínculos, renovação de símbolos. No Brasil, onde a principal saída dos craques
que se destacam continua sendo o aeroporto, o jogador-bandeira é mosca branca,
definitivamente. Mesmo os times mais populares não cultuam os craques por muito
tempo. É a era do efêmero.
Carles:
Só que quando chegam, contratados, dizem que são torcedores do clube desde
garoto. Aí não é assim? Não né? Demasiada rotatividade ultimamente.
Edu:
Já foi um dia... Hoje, ninguém é de ninguém.
Carles:
Xavi e Puyol são ‘culés’ de carteirinha, passaram a vida deles no clube e
realmente sentem apego ao clube, à terra. O clube também procura recuperar
jogadores formados em casa, como Piqué, Fábregas e Jordi Alba. O Athletic de
Bilbao faz o mesmo. Não é só uma questão política, mas de identidade com os
valores locais. Identidade e identificação porque é importante reconhecer-se.
Tanto para quem permanece no lugar onde nasceu como para quem sai para o mundo.
Edu:
É bonito, saudável, poético. Mas mesmo nesses lugares com forte identificação
local é difícil prever quanto vai durar. Você garante?
Carles:
Garantir não, ter esperanças de que todos nós procuremos revalidar os valores
regionais em troca da pasteurização da globalização, sim. E nem acho tão improvável.
Edu: Assim seja.
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