Carles: Depois
de tantos dias visitando os deuses do Olimpo, proponho que hoje desçamos à
Terra, onde muitos clubes de primeira divisão do considerado Primeiro Mundo
beiram a miséria e entram em fase de total depressão. Como o Deportivo La
Coruña, o time que já foi o favorito dos brasileiros e que acaba de ser
rebaixado pela segunda vez em três anos.
Edu:
O Depor sempre teve simpatizantes por aqui. E tem ainda hoje. Outro dia mesmo
estava o Mauro Silva sendo entrevistado, lembrando daquele time meio
'artesanal', mas que tinha alma.
Carles: Pois
é, durante os últimos 25 anos, Augusto César Lendoiro foi o grande condutor do
clube que assumiu à revelia, ameaçado de rebaixamento à Segunda Divisão B e com
uma grande dívida. E que acabou levando a ser campeão de Liga, de Copa, semifinalista
da Champions, permitindo à torcida de Riazor viver noites memoráveis em que
chegou a desclassificar times como Juve, PSG, Manchester, Arsenal ou Milan, que levou um sonoro 8 a 1, entre a ida e a
volta. Ou ainda ostentar até hoje, o privilégio de ser o único time espanhol a
ganhar em Munique ao Bayern. A grande fase desse clube começou em 1992 quando
Bebeto e Mauro Silva chegaram à pequena cidade galega. Segundo Lendoiro, foram
os dois craques brasileiros que o apresentaram então à torcida e não o
contrário.
Edu: Essa
decadência só aconteceu em função da crise econômica do país?
Carles:
Não e sim. Explico. As dificuldades econômicas do país, das empresas e de quase
todos os clubes que durante anos, moveram altas somas de dinheiro, praticamente
radicam nos mesmos pontos. Não acho que, como repete a direita "cansina"
deste país, o problema tenha sido viver acima das possibilidades. Sim é verdade
que durante os anos dourados da bolha da construção civil, adotou-se um modelo
econômico e de gestão baseado numa filosofia alheia à cultura do
"ahorro", algo muito, mas muito espanhol. Mas isso é só parte do
problema. Lendoiro é famoso como negociador, são famosas as maratonas noturnas de
negociação que começavam numa tarde e terminavam na hora o almoço do dia
seguinte. “Galegamente”, ele transformou um pequeno clube que, com todo
respeito, poderíamos comparar à Ferroviária, numa das forças do continente.
Provavelmente poucos poderão duvidar da sua competência como gestor, mas também
é verdade que pairam demasiadas suspeitas sobre algumas das fontes de
financiamento desse repentino crescimento. Pelo visto, um dia a fonte secou,
coincidência ou não, quando algumas ações judiciais e policiais apertaram o cerco sobre
determinadas atividades, famosas e propícias a uma região aberta ao mar, mas
supostamente não muito lícitas.
Edu:
Sendo assim, não deixa de ser artificial esse crescimento, embora atividades
ilícitas no futebol não tenham geografia nem pátria, muito menos estão ligadas
ao tamanho dos clubes. Basta ver o que ocorreu com times médios da Itália
ligados a empresas de renome no mercado como a Cirio (Lazio) e a Parmalat
(Parma). A coincidência nesses casos é que, quase sempre, a fonte um dia seca. Lavagem
de dinheiro dá nisso. E se já é complicado para um time considerado grande
manter suas bases de financiamento, imagine então para o Depor, apesar da
habilidade de Lendoiro. Mas houve também erro na política esportiva, pelo que
sei. Contratações equivocadas, acordos técnicos nada produtivos, profissionais
de padrão duvidoso. Foi assim?
Carles:
Os projetos esportivos, acredito, devem ser duradouros, pensados a longo prazo.
O problema é que muitos dos projetos desses clubes visam a glória passageira de
alguns personagens públicos, além de enriquecer outros tantos. No caso do
Lendoiro, um político local de linha conservadora, existe um atenuante, ou
agravante, dependendo do ponto de vista. Ele sempre se mostrou um apaixonado
pela gestão esportiva. Fundou seu primeiro clube aos 15 anos, no bairro onde
morava e levou esse clube às semifinais nacionais, sendo eliminado pelo Barça.
E não foi a última façanha antes do Depor, tendo presidido um dos clubes de
hóquei mais ganhadores da Europa. É um predestinado. Mas o esporte de alto
rendimento se move pelo imediatismo, parece incompatível com a paciência, com a
construção de estruturas sólidas que permitam não afundar, mesmo em tempos de
tempestade.
Edu:
Modelos de longo prazo no futebol são raridade, moscas brancas, serão
provavelmente peças arqueológicas dentro de algumas décadas. A engenharia para
o futebol se adaptar a esse mercado é uma grande caixa preta e lamento que seja
cada vez menor o espaço para caras tão apaixonados e idealistas. Ainda mais em
um clube que não tem tanta mídia. Temos no Brasil 'o' caso, mas ao contrário.
Ninguém, talvez com exceção do Corinthians, tem tanta mídia como o Flamengo. E
mesmo assim o clube vai atravessando tempestades sem fim em matéria de gestão.
Quem dera tivesse ali um Lendoiro. Foram sucessivos desastres administrativos
que levaram o clube de maior torcida do país a uma situação de estagnação,
pré-penúria eu diria. E, hoje, muita gente situa o Flamengo na órbita dos
ameaçados de rebaixamento no Campeonato Brasileiro. Tem sido assim, aliás, nos
últimos anos.
Carles: Não vejo os cariocas suportando o ritmo
“gallego”. Pelo que eu sei, o Flamengo padece o problema crônico de ser uma
eterna caixa de marimbondos, uma luta permanente pelo poder. Ou seja, o seu
alto nível de exposição que poderia ser uma vantagem, acaba sendo um prêmio
demasiado suculento, disputado a tapa (metaforicamente, espero). É isso ou
estou enganado?
Edu:
Em tempos recentes saíram no tapa mesmo, nada de metafórico. É óbvio que o
'case' Flamengo desemboca no problema crônico de falta de gestores, apesar de
as disputas políticas terem pautado a sucessão de fracassos administrativos.
Mas disputa política sempre haverá em um clube tão poderoso. O lamentável é que
seja entre gente tão despreparada. O Corinthians também atravessou esse
inferno, foi à Segundona, precisou purgar anos de incompetência e corrupção. E
não inventou nada de novo para sair do buraco. Só fez as coisas sob uma gestão
minimamente eficiente e com transparência. Não descobriu a pólvora, mas se
acertou dentro dos limites que o futebol brasileiro permite. Nada de genial,
mas potencializando a força de sua torcida.
Carles:
Minha avó costumava dizer que o que dói, cura. Exagero, claro. Uma velha
crença, mas com uma pontinha de verdade. Sem falsos moralismos, em algumas
situações, a queda ao inferno acaba sendo uma solução. Numa posição de
inferioridade, lá embaixo, a massa incômoda de interesseiros acaba por
desaparecer, o horizonte fica liberado e as ideias podem ser mais claras. É uma
possível análise, quiçá simplista, mas uma análise do que pode ter acontecido
ao Corinthians e também a algum clube por aqui, como por exemplo o Atlético de Madrid que também precisou ir
até o fundo do poço para curar algumas feridas.
Edu:
Só espero que os flamenguistas não levem a mal essa nossa receita.
Carles: É só um toque, não um desejo.
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